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Trabalho escravo na Serra gaúcha

A exploração na Serra e a escravidão no Brasil são temas da coluna especial de Juremir Machado

Juremir Machado da Silva, do Matinal Jornalismo
#Newsletter Do Juremir28 de fev. de 234 min de leitura
Foto: MPT/Divulgação
Juremir Machado da Silva, do Matinal Jornalismo28 de fev. de 234 min de leitura

Choque na terra das façanhas modelares: descoberto trabalho análogo à escravidão na serra gaúcha. Gente humilde reduzida à indignidade laboral em empresas terceirizadas prestando serviço a grandes vinícolas. Há quem diga que terceirizadas servem especialmente para driblar a legislação trabalhista e possibilitar sempre algum grau de aviltamento. O vinho gaúcho vem escalando montanhas de qualidade. Deixou de ser um produto que dava dor de cabeça e deixava os lábios roxos para ganhar prêmios internacionais e desfilar orgulhoso. A notícia de que por trás do cenário há bastidores do pior do século XIX estraga a narrativa. A primeira reação é direta: impossível as vinícolas não saberem o que se passava na sua linha de colaboração.

Não visitavam seus fornecedores de mão de obra para atividades essências como colher a uva? Salton, Garibaldi e Aurora não estavam vendo o horror em suas escarpas? Não lhes cabiam fiscalizar as parceiras? Onde fica a responsabilidade subsidiária? Nas redes sociais, onde o assunto ferve, rapidamente a imagem da serra gaúcha foi conectada ao forte apoio a Jair Bolsonaro na região. Duplo prejuízo. A ganância come o rabo do bicho. Lucrar mais à custa da miséria de trabalhadores faz parte do repertório dos livros do grande escritor francês Émile Zola. Eram os tempos tristes do capitalismo industrial em ascensão. Seres humanos não passavam de matéria-prima a ser moída nas linhas de montagem, perdendo mãos, braços, vidas a cada dia. A fumaça preta saindo pelas chaminés simbolizava o progresso.

Não adianta oferecer fotografia de cartão postal para o turista na parte da frente da montagem escondendo, por trás da cena, um rastro de iniquidade. Correm as campanhas na internet de cancelamento das marcas envolvidas. Será preciso trabalhar muito para eliminar a raiz dos problemas e reconstruir a imagem. Não bastará retoque de photoshop. Até armas de choque se usava nos corpos escravizados. O que essa situação apavorante ensina? Talvez que existam sempre aqueles dispostos a usar os mais infames e antigos dos métodos para ganhar dinheiro. A ideia de produzir eticamente não entra na cabeça de muitos. Se duvidar, argumentam que estavam criando empregos. Não se trata de condenar por princípio a iniciativa privada ou de generalizar sobre empresário. Nada disso. A questão é objetiva: infâmia, não.

O capitalismo do século XXI terá de ser humano, produzindo em condições de transparência e dignidade. Em contrário, o consumidor bem-informado rejeitará os seus produtos. Claro que os céticos dirão que é da natureza do sistema querer maximizar os lucros e minimizar os custos de qualquer jeito. Não rola mais. Esperamos, de quebra, que Yuval Harari não esteja certo e que em 2050 não tenhamos uma classe de “inúteis”, pessoas sem trabalho, superadas pela inteligência artificial e por novos meios de criação de riqueza e mercadorias.

Tambor tribal (Homens ao mar)

No porto do Ceará não se embarcam mais escravos.
No Sul, os mais afoitos falam até em eslavos.
Onda alta, fúria negra e tambores silenciosos.
Rugem as matracas contra os senhores odiosos.
No porto do Ceará manda agora o Dragão do Mar,
A vida desses negros já não está suspensa no ar.
Homens altos, homens tristes, andam pela praia.
A voz forte ordena que dali ninguém mais saia.
No porto do Ceará não se embarcam mais escravos,
No Rio de Janeiro alguns já falam em batavos.
No porto do Ceará não se embarcam mais escravos.
É o fim de uma travessia velha como os anos.
Em São Paulo multiplicam-se os italianos
Trazendo utopias, porco dio e deuses romanos.
Uma negra esguia como o vento ou a miragem,
Corre mar a dentro como o rastro de uma aragem,
Vai cantando, vai chorando, vai falando assim:
No porto do Ceará não se embarcam mais escravos…
Em Porto Alegre ainda se matam negros “por acaso”.

Parêntese da semana

Belíssima edição sob o signo da “coragem”. Luís Augusto Fischer em sua apresentação destaca: “Coragem como teve e tem o Márcio Chagas, que em seu texto hoje relembra o enfrentamento do racismo explícito que sofreu quando ainda era árbitro profissional de futebol, por sinal na mesma cidade da Serra que esta semana andou de novo no noticiário por trabalho análogo à escravidão”. Leitura obrigatória e instrutiva.

Frase do Noites

Na lata: “Só pretendia não saber que a escravidão era infame quem tapava a boca de escravizados com máscaras de flandres”.

Imagens e imaginários

Escravidão nos tempos de D. Pedro I

Escuta essa

Rita Lee representa parte do melhor da cultura brasileira movediça e aberta a influências de todo lugar sem perder algo etéreo chamado brasilidade. A maravilhosa canção “baila comigo” seria possível como lançamento hoje? Seria cancelada como politicamente incorreta? Talvez não se deva confundir homenagem com preconceito. Mas aí é preciso saber separar a simplificação dos opostos estanques dos cruzamentos, matizes, encantamentos, influências e transcrições.

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