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Por que venda da Corsan está na justiça e pode acabar em CPI

Sindiágua denuncia pressa e falta de transparência do processo de privatização da primeira empresa de saneamento estadual do Brasil. Alguns documentos seguem sob sigilo

Bettina Gehm - Austral
#Corsan 5 de abr. de 238 min de leitura
Estação de tratamento de água da Corsan. | Foto: Corsan/Divulgação
Bettina Gehm - Austral5 de abr. de 238 min de leitura

Em dezembro do ano passado, a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) foi arrematada por R$ 4 bilhões em um leilão feito em tempo recorde pelo governo do estado. Entre o anúncio da privatização, em março de 2021, e o leilão, passaram-se 21 meses. 

A pressa para desestatizar a estatal acabou por barrar a conclusão do seu processo. O Sindiágua–RS pediu a abertura de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar o leilão e entrou com quatro liminares que impediam o prosseguimento da venda – uma delas já foi derrubada.

O leilão da Corsan chegou a ser suspenso em dezembro de 2022 pelo judiciário, com alegações de inconstitucionalidade do processo. Mas a liminar foi derrubada pelo ministro Lelio Bentes Corrêa, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e o certame foi realizado no mesmo mês. A proposta vencedora, do Consórcio Aegea, foi a única apresentada no certame. 

Presidente do Sindiágua–RS, Arilson Wünsch explica que a possibilidade legal da participação da Aegea no leilão é um dos fatores a serem esclarecidos na CPI. Segundo o pedido da CPI, a empresa atua na Corsan desde 2012, já tendo elaborado estudos aprofundados sobre todo o sistema de esgoto sanitário da estatal, o que daria a ela vantagem sobre a concorrência. Os documentos que comprovam essa queixa, segundo Wünsch, não são de acesso público.

O processo de venda da Corsan também peca na transparência. Passados mais de dois meses do leilão, alguns documentos de venda ainda estão sob sigilo no Tribunal de Contas do Estado (TCE). “A sociedade deveria saber de tudo que está nesse processo”, argumenta Wünsch. O Austral questionou a Corsan sobre o motivo do sigilo e se há previsão de divulgação dessas informações para a sociedade, mas não houve retorno até a data de publicação desta matéria.

Outro ponto que o Sindiágua quer ver sendo investigado na CPI é o valor pelo qual a empresa foi vendida. “A Corsan foi arrematada por R$ 4,151 bilhões. Mas há outros três estudos, executados por entidades diferentes, apontando que o valor da empresa é maior”, alega Wünsch. O Sindiágua contratou um estudo, elaborado em fevereiro deste ano, que avaliou a estatal em R$ 8,025 bilhões. O responsável pela pesquisa é o economista André Locatelli, professor da especialização em Direito e Negócios na Unisinos.

A CPI ainda não foi aberta porque faltam assinaturas das bancadas do PDT e PL. “Nós estamos negociando com todas as bancadas, não se trata de ideologia”, afirma o presidente do Sindiágua. “Tem partidos favoráveis à privatização, mas contrários à metodologia utilizada pelo governo”. 

A investigação em si não consegue travar o processo de venda da Corsan, já que se os trâmites continuariam mesmo com a CPI aberta. Segundo o professor da UFRGS Aragon Érico Dasso Júnior, especialista em gestão pública, o que interrompe o processo são as liminares ainda vigentes. “Como a venda foi mal conduzida, abriu brecha para algumas ações judiciais. Mas são erros que podem ser sanados, e então o judiciário não poderá mais bloquear a privatização da Corsan”, explica. 

Sob judice

Uma ação popular no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) questiona não só a definição do valor mínimo fixado para o leilão da Corsan, mas também a validade dos termos aditivos que a empresa assinou em setembro de 2021 com municípios que se comprometeram em estender o prazo dos contratos com a estatal. Cada município gaúcho tem de assinar um contrato com a Corsan, concedendo à estatal o serviço de água e esgoto. Nesse contrato, como alegado pelo Sindiágua, há uma cláusula autorizando a extinção da concessão caso a Corsan seja desestatizada. Isso acarretaria numa rescisão em massa dos contratos da Corsan com todos os municípios gaúchos para a qual presta serviços. 

Essa é uma das quatro ações movidas pelo Sindiágua que impediam a assinatura do contrato de venda da Corsan – uma já foi invalidada pelo judiciário.

Além da ação popular, uma liminar no TCE questiona a porcentagem de esgotamento sanitário coberto pela Corsan. Nos documentos divulgados para o leilão, a empresa prevê a necessidade de investir R$ 10 bilhões para ampliar a cobertura de esgoto sanitário. Mas o sindicato apresentou um estudo ao Ministério Público de Contas (MPC) indicando que a cobertura chega a quase 70%, o que reduz o montante que precisaria ser investido para atingir a meta do Marco Legal do Saneamento, de 90% – e que altera o valor da empresa.

Outro processo corre na Justiça do Trabalho. Trata-se de uma liminar impedindo a assinatura do contrato de venda da Corsan até que a empresa apresente um estudo do impacto previdenciário e social da privatização. Atualmente, a previdência dos funcionários da estatal é administrada pela Funcorsan, que iniciou suas atividades em 1980. O processo chegou a ser derrubado no dia 17 de março mas, menos de duas semanas depois, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) declarou que a liminar continua valendo.

A Corsan também precisaria explicar o destino dos contratos de trabalho e direitos adquiridos em caso de liquidação da empresa. “Para onde vão os contratos de trabalho e o que acontece com quem já está aposentado?”, questiona Wünsch.

No TJ, mais uma liminar movida pelo Sindiágua aponta que a desestatização vai de encontro ao Artigo 249 da Constituição Estadual. A lei diz que o estado deve manter um órgão de execução dos serviços de saneamento. Com a privatização da Corsan, este órgão executor deixa de ser mantido pelo estado, contrariando a legislação. Essa ação foi revogada em 22 de março. O judiciário não viu elementos suficientes para impedir a venda da companhia.

Desestatizar a Corsan, segundo a própria empresa, é a forma de garantir o cumprimento das metas do novo marco regulatório de saneamento, o que exigiria investimentos “além da capacidade atual” da companhia. Definidas em 2020, as metas para universalizar o saneamento básico incluem o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033. 

Dados de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), provido pelo governo federal, mostram que 86,9% da população do Rio Grande do Sul é atendida com rede de água. A rede de esgoto sanitário chega a apenas 34,1% dos moradores do estado.

O presidente do Sindiágua, no entanto, afirma que a estatal não enfrenta problemas financeiros. “Desde 2008, quando entrou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a Corsan foi uma das empresas que mais captou recursos para fazer esgoto sanitário. No final do governo Yeda e principalmente no governo Tarso, captamos em torno de R$ 4 bilhões”, afirma. A Corsan não respondeu ao Austral sobre quais dados financeiros sustentam a previsão que a companhia não poderia cumprir a meta por conta própria.

Especialista em gestão pública, Aragon Júnior afirma que a companhia tem condições de continuar desempenhando suas funções com saúde financeira, desde que o governo – controlador majoritário das ações da estatal – tenha interesse. “Se o governo não tem interesse, vai fazer de tudo para dizer que a Corsan é deficitária”, pondera o professor da UFRGS. “Leite diz que é obrigado a privatizar a companhia por causa do novo marco regulatório, mas a nova legislação apenas exige das prestadoras melhores indicadores de universalização do saneamento básico. O governo parece não considerar prioridade investir em água e saneamento”.

O professor afirma que o cumprimento das metas do novo marco do saneamento depende do que a Aegea fará quando assumir o controle da Corsan. “Acho improvável que qualquer gestor privado cumpra as metas do novo marco, porque isso exigiria deles um hiper investimento de capital. A história das privatizações no Brasil mostra que esses capitais privados gostam de recuperar o seu dinheiro no curto prazo”, opina.

Na contramão 

A desestatização de um bem essencial, como o saneamento básico, vai na contramão de outros países, que vêm fazendo o processo oposto: reestatizando empresas privatizadas nas décadas de 1980 e 1990. Para o especialista, o caminho que o Rio Grande do Sul está tomando é um retrocesso. “Levar um direito básico para a esfera do mercado coloca em risco a parcela da população que não tem condições financeiras. Só as pessoas com condições terão o serviço”, afirma Aragon. “Sempre que um serviço é privatizado, o norte passa a ser o lucro. E se o lucro estiver ameaçado, a empresa desiste do negócio ou classifica como inadimplente o cidadão”. 

Ainda segundo o professor, privatizar a água é diferente de privatizar serviços como a telefonia, que oferece possibilidade de escolha entre algumas operadoras. “Só uma companhia oferece água. Se for uma empresa privada, vai ser um monopólio. Cada cidadão vira um consumidor cativo: ou contrata aquela companhia de água e paga o que eles querem, ou não tem água”, diz.

A consequência imediata da privatização, de acordo com o Sindiágua, é um aumento na tarifa. Estatizada, a Corsan é imune a impostos federais, mas a partir da privatização, terá de pagar tributos – diferença que vai cair na conta do consumidor.

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