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#Crônica

Origens: a biblioteca e as cerejeiras

Na crônica de hoje, Juremir escreve sobre o poder dos livros

Juremir Machado da Silva
#Crônica27 de abr. de 235 min de leitura
Foto: Sergi Ferrete/Unsplash
Juremir Machado da Silva27 de abr. de 235 min de leitura

Homem simples, meu pai recebeu um pedaço de terra para cultivar. Em troca, teria de preservar a biblioteca do proprietário. Uma biblioteca na solidão da campanha. Uma biblioteca no verde do pampa. Uma biblioteca num lugarejo chamado Palomas que, nas minhas fantasias, continua a ser uma espécie de Macondo do genial escritor Gabriel García Márquez. Nos longos invernos que passei ali, enquanto o vento minuano soprava nos campos, li, sem entender, Anton Tchecov, o gaúcho Simões Lopes Neto, extraordinário precursor de Guimarães Rosa, com suas Lendas do Sul e seus “causos” gauchescos, Dom Segundo Sombra, do argentino Ricardo Guiraldes, um livro que me marcou para sempre, e até Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, cujos volumes guardo até hoje.

Ali, a minha vida mudou. À sombra das cerejeiras que eu nunca tinha visto, um mundo abriu-se. Por causa daquela corrente que invadiu a minha vida de forma tão inusitada me fiz, muito mais tarde, jornalista, professor universitário, tradutor e escritor. Continuo germinando aquela semente.

Que poder têm os livros sobre nós? Podem, de fato, mudar as nossas vidas como estradas que se bifurcam? O livro é uma fresta na espessa parede do mundo, um fio de luz vazando entre as pedras do tempo, um filete de água irrigando a aridez do cotidiano, uma nascente minúscula de grandes rios ou simplesmente uma gota d’água umedecendo um naco de terra. Sempre que ouvimos alguém defendendo a importância da leitura, ou exigindo dos governos políticas que obriguem os jovens a ler na escola, levamos um susto. Ler, para muitos, tornou-se sinônimo de chatice e de dever de casa. As boas intenções, em se tratando de estimular a leitura, resultam quase sempre em crescimento do pavor em relação aos livros.

Uma adolescente me disse assim: “Posso ser muito feliz sem ler José de Alencar”. Um velho bem-sucedido foi além: “Nunca li Platão. Mas ganhei bem a minha vida, eduquei os meus filhos e não me arrependo de nada”. Uma senhora muito elegante ponderou: “Ler romances só pode ser um prazer, nunca uma obrigação. Quando será que vão entender que a literatura é distração?” Um rapaz meio cínico apresentou sua teoria: “Obrigar a ler romances, por exemplo, é muito importante para quem escreve romances. É papo de quem quer ganhar dinheiro com isso”. E agora? Devemos acusá-los de ignorância? Ou considerar que há algo de inquietante no que dizem?

O que é um livro? O que interessa num romance, na poesia, na ficção? Alguns amam o papel e temem o desaparecimento do livro impresso. Há, claro, uma história do livro, impressa no papel, com seus cheiros e técnicas, que pode ser triste perder. Mas o mais importante são as histórias, não os suportes. Podemos encontrar grandes histórias no cinema, na televisão, no teatro, na tradição oral, na Internet, agora, em viagens, etc. Estamos na era da imagem. A relação, porém, com a palavra escrita exige um esforço de imaginação superior. Temos de preencher todos os espaços com a nossa participação direta e total.

Nas feiras de livro das escolas, as maiores vendas são de obras infantis. As crianças jogam o jogo da fantasia prazerosamente. Os adolescentes fogem horrorizados do que lhes é oferecido. Só mais tarde, adultos, alguns voltarão às livrarias e bibliotecas. O utilitarismo faz com que muitos se recusem a ler um romance alegando que não há razão para perder tempo com “mentiras”. Isso explica, em parte, o sucesso das biografias. Ao menos, dizem alguns, aprende-se algo sobre a realidade.

Como impedir que a magia da leitura não seja descoberta por tantos jovens apressados? Talvez a primeira medida seja de inverter o processo, indicar-lhes primeiramente os autores contemporâneos, com a linguagem e os problemas atuais, para só depois ir aos clássicos.

Principalmente fazer ver que a poesia e a ficção lidam com a vida e com a realidade. No fundo, a questão está mal colocada. O sucesso das novelas de televisão indica o grande interesse por ficção. O problema volta a ser a palavra escrita. O que há nela de assustador? Por que o perfume das cerejeiras permanece estranho a tantas pessoas sensíveis e desejosas de aventuras e de grandes sensações?

A literatura não salva nem educa para o sucesso: abre fendas na rotina para que entre a brisa úmida da poesia, do “inútil”, no sentido daquilo que não pode necessariamente ser convertido em ganho, em dinheiro, em utilidade propriamente dita, a não ser a do prazer em si mesmo.

Qual a utilidade de um banho de chuva tomado por divertimento? Qual a utilidade de um gol para a torcida?

Qual a utilidade de uma canção de amor? Qual a utilidade de uma lua cheia? Como diz a canção, de que serve a tarde?

Em todo caso, não existe desenvolvimento sem cultura. E não existe cultura desenvolvida sem livros, poesia e ficção.

A realidade tem muito de imaginário. O imaginário é uma realidade incontornável. A literatura continua sendo uma das melhores formas de tentar compreender a natureza complexa e contraditória do real e do homem.

(De meu livro Aprender a (vi)Ver. Record, 2006)

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