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Projeto de lei de combate à violência sexual em bares e casas noturnas avança na Assembleia

Rapidez no atendimento à vítima e na coleta de provas são princípios do "No Callem", protocolo espanhol que inspira projeto de lei gaúcho. Outros dois projetos com mesmo teor estão na pauta da Câmara de Porto Alegre e dos Deputados

Bettina Gehm, Austral
#violência sexual24 de abr. de 237 min de leitura
As deputadas Stela Farias (PT), Daiana dos Santos (PCdoB) e Maria do Rosário (PT/RS) lideram debates e projetos de lei pela segurança das mulheres. Crédito: Assembleia Legislativa do RS
Bettina Gehm, Austral24 de abr. de 237 min de leitura

Na noite de 30 de dezembro de 2022, o jogador Daniel Alves compareceu a uma festa na boate Sutton, em Barcelona. Lá, teria forçado um contato sexual com uma mulher de 23 anos e a estuprado no banheiro do local. Ela e as amigas alertaram o ocorrido a funcionários da boate, que chamaram a polícia. Os agentes foram ao local, atenderam a vítima e a levaram a um serviço médico de urgência. O exame de corpo de delito identificou lesões no corpo da jovem e a presença de sêmen nas suas roupas. O caso levou Daniel Alves à prisão.

O que fez os funcionários da boate saberem exatamente como agir naquela situação é o protocolo No Callem. Criado em 2018, é adotado hoje por cerca de 40 estabelecimentos da capital catalã. 

Trata-se de um conjunto de ações a serem tomadas quando alguém for vítima de assédio sexual ou estupro em ambientes de lazer. Entre seus princípios, estão o de que a vítima de violência sexual deve ser prioridade, que ela precisa ser acolhida e ter suas decisões respeitadas. Também deve ser levada rapidamente para exames médicos e ter a identidade preservada, sem que o foco seja um processo criminal. 

Na mesma noite em que Daniel Alves foi acusado de estupro, a polícia realizou uma perícia e encontrou material genético da vítima no banheiro na boate. Também apreendeu imagens das câmeras de segurança do local, provando que o jogador e a mulher passaram 15 minutos no banheiro.

A rapidez do processo foi essencial para reunir evidências para prender o jogador 21 dias depois – Daniel Alves já havia deixado a boate quando a polícia chegou. Para a pesquisadora Taísa Soares, mestre Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a celeridade no caso envolvendo o capitão da Seleção Brasileira permitiu que os responsáveis pela investigação do caso conseguissem remontar o que aconteceu na boate Sutton. “Ficou mais fácil evitar teses de defesa que buscam enfraquecer a palavra da vítima”, avalia.

66% relatam já terem sofrido assédio

Um estudo de 2022 dá conta de números alarmantes de violência em casas noturnas. Encomendado pela marca de uísque Johnnie Walker e pela startup Women Friendly, que certifica casas noturnas empenhadas em coibir o assédio sexual, o levantamento ouviu 2.221 mulheres maiores de 18 anos em todas as regiões do Brasil: 66% delas relataram já ter sofrido assédio sexual em restaurantes e bares.

De olho nesses dados e no caso envolvendo Daniel Alves, a deputada estadual do RS Stela Farias (PT) protocolou o PL 43/2023 para que o Rio Grande do Sul disponha de um protocolo nos mesmos moldes do No Callem. O projeto aguarda o parecer da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia, cuja a relatoria está sob encargo da deputada Nadine Tagliari (PSDB) desde 28 de março.

“Em Barcelona, todas as ferramentas do estado foram colocadas à disposição para proteger a mulher. É importante ter isso também aqui”, afirma a deputada. Ainda que o PL seja basicamente uma transposição do protocolo espanhol, Farias aponta diferenças entre a Europa e o Brasil quando o assunto é violência sexual. “Nós ainda estamos num ambiente em que é preciso enfatizar que o não é não. Não ao toque, ao beijo forçado. Na Europa, eles estão num nível em que, quando a mulher fala que foi assediada, aquela palavra já basta: sim é sim”, diz. 

Desafios para a versão gaúcha

Além de pelo menos um funcionário qualificado para identificar casos de assédio, há mais duas ações fundamentais no PL proposto pela deputada. Primeiro: orientar os estabelecimentos para evitar critérios sexistas, como ingressos diferentes para homens e mulheres e promoções para o público feminino. A prática é vista como uma estratégia para atrair homens a eventos que, por funcionarem com esse tipo de diferenciação, teriam mais mulheres “à disposição”. 

A equipe dos bares, restaurantes e casas noturnas também deve receber instruções para lidar com episódios de violência sexual. “É preciso dar atenção à vítima. É toda uma ação que deve ser coordenada: a preservação das provas, o acionamento da polícia etc”, explica Farias.

O protocolo gaúcho não prevê multa a estabelecimentos que não o cumprirem, mas sim o “convencimento” dos responsáveis pelos locais. “Como promotores da lei, nós [deputados(as)] estamos indo [apresentar o projeto] ao CDL, à Federasul, às federações que representam as empresas”, diz Stela Farias. A intenção é evoluir para a criação de um selo de “estabelecimento amigo das mulheres”. “O primeiro passo é aprovar o PL 43. Ele vai receber emendas, queremos qualificar e melhorar ainda mais a proposta”, defende a deputada petista.

Um selo para locais considerados “seguros para mulheres” em Porto Alegre também é intenção da vereadora Abigail Pereira (PCdoB). Ela protocolou o PL 026/23, que propõe conferir o selo a bares, restaurantes, discotecas e “qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas que adotem o protocolo ‘Não é Não’”. O protocolo vem de outro projeto de lei, em âmbito nacional, de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT) e proposto em fevereiro.  “O nosso PL é quase um filhotinho [do Não é Não] no âmbito estadual”, afirma Farias. O projeto chegou à Comissão de Defesa do Consumidor na Câmara em 17 de março.

No texto proposto por Farias, não fica claro se a capacitação dos funcionários de bares e casas noturnas para identificar situações de assédio deve ser promovida pelo governo ou pelos empresários. Em entrevista ao Austral, Farias defende que o estado deva oferecer o treinamento, apesar de alguns locais já contarem com iniciativas próprias. “Não se pode esperar que o comerciante faça, o estado tem que gerar campanhas, os órgãos precisam fazer o trabalho de visitação”, afirma. “Assim que aprovarmos a lei, vamos sair visitando os locais para capacitação desses operadores”, explica Farias.

Apesar da pressa para aprovar o projeto de lei, a deputada admite que os órgãos gaúchos de segurança – essenciais para o cumprimento do protocolo anti-assédio – estão precarizados. “Em Barcelona, existe uma estrutura muito mais forte do que a nossa. Aqui, a rede precisa ser remontada”, avalia.

A pesquisadora Taísa Soares afirma que, teoricamente, o estado tem condições de implantar um protocolo nos moldes do No Callem. “Mas como isso vai se dar na prática é um incógnita”, pondera. “Assim como a lei Maria da Penha prevê inúmeras ferramentas, não significa que elas sejam acionadas no mundo real. Sempre há há um descompasso entre o que é determinado e a realidade”.

Mudanças na lei Maria da Penha

Paralelo à proposta de Stela Farias, outros projetos de lei buscam medidas para proteger as mulheres da violência sexual. Em âmbito nacional, a então senadora Simone Tebet (MDB) propôs, no ano passado, alterações na lei Maria da Penha.

Se sancionado, as medidas protetivas de urgência passarão a ser concedidas a partir do depoimento da vítima, e serão revogadas apenas se for comprovado que a mulher e seus dependentes não correm risco à sua integridade física, psicológica ou patrimonial. 

A tipificação penal da violência e a existência de um boletim de ocorrência não serão requisitos para a vítima obter uma medida protetiva. “A intenção é pular uma etapa”, afirma Soares. “Antes, a medida protetiva tinha um prazo de até 48h para ser aprovada”, explica.


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