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Governo Leite beneficia agrotóxicos com isenção de impostos e flexibilização da lei

Estado renunciou arrecadação de R$ 2 bilhões só em 2021 para aliviar carga tributária de produtos. Para procuradora do Fórum Gaúcho do Impacto dos Agrotóxicos, privilégio é inconstitucional.

Bettina Gehm, Austral
#agrotóxicos 17 de abr. de 239 min de leitura
Trator pulveriza agrotóxicos em lavoura. | Foto: Fernando Dias
Bettina Gehm, Austral17 de abr. de 239 min de leitura

Em 2021, um ano após assumir seu primeiro mandato como governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB) conseguiu a aprovação de um projeto que liberou o uso de agrotóxicos proibidos em seu país de origem. Um ano depois, em 2022, o governador renovou a isenção fiscal dada a este tipo de produto, que não paga Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

As informações mais recentes publicadas no site Receita Dados, da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz), revelam que o estado deixou de arrecadar R$ 2 bilhões só em 2021, último dado consolidado. O montante é a soma dos benefícios cedidos a vários insumos agropecuários, que englobam agrotóxicos, rações, sementes, enzimas e outros itens.

Para a procuradora do MPF-RS Ana Paula Carvalho de Medeiros, membro do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos (FGCIA), a isenção vai de encontro ao que prevê a Constituição. “A tributação tem um papel importante, uma função extrafiscal de desestimular determinadas atividades consideradas nocivas. No Rio Grande do Sul, estamos dando um tratamento privilegiado a um produto nocivo para a saúde e para o meio ambiente”, afirma.

O benefício fiscal, segundo Medeiros, também contraria o princípio da seletividade aplicado a itens considerados essenciais: os itens mais indispensáveis devem ter maior redução de impostos em comparação com os produtos supérfluos. “Um produto nocivo [como os agrotóxicos] não é essencial, muito pelo contrário. Em outros locais, quanto mais tóxico o produto, maior a tributação. Aqui não se faz essa diferenciação, e ainda se dá benefício fiscal. Cigarro e bebidas têm uma tributação elevada justamente para desestimular o consumo, enquanto o agrotóxico tem estímulo”, diz a procuradora.

A isenção do ICMS é caracterizada como renúncia fiscal, pois muda o funcionamento normal desse tributo. É como se o estado estivesse abrindo mão do direito sobre a receita que vem do ICMS para estimular uma atividade econômica – no caso, as atividades que utilizam agrotóxicos.

Benefício fiscal

A renúncia fiscal dos agrotóxicos no RS tem origem em um convênio dos estados com o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) assinado pela primeira vez em 1997. O acordo permite reduzir até 60% da base de cálculo do ICMS aplicado aos insumos agrícolas comercializados entre os estados. A base de cálculo é o valor sobre o qual incide a porcentagem de tributo a ser cobrado – no caso do ICMS, esse valor normalmente é o preço de venda do produto. Por exemplo: se um agrotóxico é vendido a R$ 100, o convênio permite que o ICMS seja uma porcentagem calculada sobre R$ 40. 

O convênio do Confaz também permite zerar o imposto em transações internas de cada unidade da federação. Por isso, no mesmo ano de 1997, um decreto assinado pelo então governador Antônio Britto passou a autorizar a isenção do imposto nos insumos do campo, como agrotóxicos, para comercialização no Rio Grande do Sul.

Mais de 25 anos depois, o Confaz renova o convênio quase anualmente, após os estados entrarem em consenso. A última prorrogação, assinada em 2021, vale até 2025. A novidade e agora é que os fertilizantes, usados para preparar o solo, estão de fora da isenção. No Rio Grande do Sul, o decreto assinado pela primeira vez por Britto, que isenta os insumos agrícolas do ICMS, foi mantido.

Protocolada pelo PSOL no STF em 2016, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) questiona o convênio de 1997 do Confaz que possibilita isentar os agrotóxicos de ICMS. O partido alega que a medida estimula o consumo intensivo desses produtos e viola direitos à saúde e ao ambiente equilibrado. “O aumento da utilização dos agrotóxicos – e da contaminação por eles causada – relaciona-se diretamente com a expansão do agronegócio no país, cujo modelo, além dos agroquímicos, leva a outros grandes impactos socioambientais, como o desmatamento, o monocultivo em grandes extensões, a alteração da microfauna do solo e outros”, escreve. A ADI 5553 ainda tramita no STF, sem previsão de andamento.

Com a isenção fiscal,  os estados abrem mão de muito dinheiro. Um estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), com base em dados do Censo Agropecuário de 2017, mostra que naquele ano os estados e o Distrito Federal deixaram de arrecadar R$ 6,2 bilhões. O valor representa mais de 60% da desoneração total no país. 

Em nota enviada ao Austral, a Sefaz afirmou não haver previsão de rever a tributação dos agrotóxicos no estado, já que o convênio do Confaz tem validade para todo o território nacional. No entanto, o texto de 1997 apenas autoriza os estados e o Distrito Federal a reduzir ou zerar o ICMS. Ou seja, trata-se de um decreto estadual, que poderia ser desfeito com uma decisão do governo. “O poder executivo estadual pode acabar com a isenção nas operações internas”, explica a procuradora Ana Paula Medeiros.

A secretaria alega que a renúncia fiscal não é um incentivo ao setor agropecuário, mas uma simplificação que abrange diferentes itens da economia. “Se os insumos agropecuários fossem tarifados, os produtores rurais, que são mais de 700 mil no Rio Grande do Sul, teriam que ter escrita fiscal, o que representaria um expressivo custo com declarações, por exemplo. Por esse motivo, eles já recebem os insumos sem o imposto. Adotou-se a norma de sequer cobrar o imposto para não gerar um custo de conformidade para os produtores”, afirmou em nota.

Em um relatório, publicado em 2020, a Abrasco contesta essa versão. Segundo o documento, a isenção fiscal não afeta de forma relevante os preços dos produtos agrícolas, pois commodities agrícolas, como a soja e o milho, têm seus preços definidos pelo mercado internacional.

Por isso, conclui o estudo, os principais beneficiários da renúncia ou desoneração fiscal seriam os grandes usuários de agrotóxicos e exportadores de commodities, e não o consumidor final. “Subsidiar um setor já bastante competitivo como o agronegócio brasileiro significa, em última instância, apenas proporcionar incrementos na margem de lucro desse setor exportador”, detalha o documento.

Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Bahia e Goiás são estados que, conforme a pesquisa da Abrasco, perdem mais arrecadação do que outros. Isso afeta a capacidade dos estados de lidar com crises fiscais e de realizar investimentos sociais em diversas áreas.

Entre 2012 e 2014, o Rio Grande do Sul usou 9,3 mil toneladas de agrotóxicos, uma média anual de 9,05 kg por hectare – na época, a média nacional era de 3,6 kg por hectare. Os dados são de um atlas do uso de agrotóxicos no Brasil, publicado em 2017 pela professora da USP Larissa Bombardi – a pesquisadora teve de sair do país após perseguição com a revelação dos dados.

Venenos liberados 

O primeiro mandato de Eduardo Leite como governador do RS também foi marcado por alterações que abrandaram o Código Ambiental do estado, até então considerado um exemplo para o país. Houve uma flexibilização na política de agrotóxicos, regida por uma lei de 1982 , que proibia a distribuição e comercialização de agrotóxicos que não tivessem uso autorizado no país de origem.

Mesmo que a legislação sobre defensivos agrícolas seja de competência da União, a lei estadual se valia do princípio da precaução. O promotor de justiça Nilton Kasctin dos Santos explica: “Pode-se estabelecer uma norma estadual sobre agrotóxicos quando ela tiver a finalidade exclusiva de proteger o meio ambiente e a saúde”. Com a flexibilização aprovada por Leite em 2021, o governo abriu caminho para a incidência da legislação federal, que não restringe a utilização de agrotóxicos banidos no país de origem.

“A alteração da lei estadual nº 7.747/82, feita em junho de 2021, não autoriza direta e formalmente a utilização de agrotóxicos novos no território gaúcho. Nem poderia fazê-lo, porque isso é matéria para lei federal. Mas, na prática, ao revogar a proibição de agrotóxicos banidos no país de origem, permite, sim, a utilização de inúmeros agrotóxicos já utilizados nos demais estados”, resume Santos. 

A Secretaria da Agricultura afirma que não houve aumento no uso de agrotóxicos por causa da alteração na lei. Alega que, antes da mudança, “havia dúvidas” sobre o que deveria ser considerado país de origem para verificar se o produto tinha autorização de uso. “Alguns agrotóxicos chegam a ter três países envolvidos: a síntese feita em um país, a tecnologia gerada em outro e a importação por um terceiro, inviabilizando a conferência de todos quanto ao uso. A alteração da lei trouxe solução para esta questão, mas não esvaziou a competência do estado quanto à restrição do uso de alguns produtos”, informou em nota enviada ao Austral.

Cabe à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), ligada à Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), fazer o cadastro e emitir o registro dos agrotóxicos que podem ser utilizados no Rio Grande do Sul. No site da Fepam, é possível verificar todos os 1.121 produtos cadastrados e autorizados para uso. A Sema diz que a alteração na lei não autorizou nenhum princípio ativo novo. “Os agrotóxicos que receberam autorização de uso não têm relação com a implementação das mudanças na lei. Houve registros de produtos, mas que já tinham aprovação do princípio ativo”, informou em nota.

De acordo com o promotor, a alteração da lei estadual foi resultado de um intenso lobby desempenhado pelo agronegócio e por fabricantes de agrotóxicos. “O principal argumento usado por esses setores foi o risco de perda de competitividade da produção agrícola gaúcha em relação aos demais estados do país, uma vez que nestes outros estados eram utilizados agrotóxicos ‘mais eficientes’ do que nas lavouras do RS. Mas a proibição estava em vigor desde 1982, e nunca se falou em dados que apontassem eventual prejuízo aos produtores gaúchos”, argumenta. 

A pressão para liberar o uso desses venenos em solo gaúcho ocorreu ao mesmo tempo em que o então presidente Jair Bolsonaro permitiu o uso de novos agrotóxicos no Brasil. Pelo menos 37 dos agrotóxicos registrados no país entre 2019 e 2022 são proibidos nos Estados Unidos e na União Europeia por causarem danos à saúde humana. “Agora ‘vale a pena a briga’, pois a liberação geral no âmbito federal abrange centenas de ingredientes ativos e produtos agrotóxicos proibidos nos respectivos países de origem”, explica Santos.

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