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Foco na mitigação da seca torna RS mais vulnerável às mudanças climáticas

Recursos milionários dos governos federal e do Rio Grande do Sul foram destinados para combater principalmente os impactos imediatos da falta de chuvas

Bettina Gehm, Austral
#Crise climática28 de mar. de 237 min de leitura
Causada pelo fenômeno La Niña, a seca prolongada dos últimos anos teve uma duração inédita e acarretou prejuízos na agricultura
Bettina Gehm, Austral28 de mar. de 237 min de leitura

O Rio Grande do Sul enfrentou uma seca histórica marcada pela demora na ação dos governos estadual e federal, que apenas no início de 2023 encaminharam um socorro de emergência ao setor agropecuário, o mais atingido. Após amargar índices de chuvas abaixo da média por três anos, a estiagem alcançou 72% das cidades durante o ciclo de chuvas que começou em dezembro do ano passado. Dos 497 municípios gaúchos, mais de 380 decretaram situação de emergência.

Em fevereiro, o governo Lula anunciou R$ 430 milhões para mitigar os efeitos da seca. Eduardo Leite liberou outros R$ 336 milhões, por meio do programa Avançar, destinado a projetos de perfuração de poços artesianos e revitalização de estações meteorológicas. Mas os recursos servem apenas para amenizar os impactos imediatos da estiagem, e não para preparar a adaptação do estado em um cenário de colapso climático.

Causada pelo fenômeno La Niña, a seca prolongada dos últimos anos teve uma duração inédita e acarretou prejuízos na agricultura. O PIB do Rio Grande do Sul caiu 5,1% em 2022. Segundo o Departamento de Economia e Estatística (DEE), o resultado se deve à estiagem. A queda do PIB agropecuário foi de 45,6%. A Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) estima que, para cada um real gerado na propriedade rural, outros R$ 3,29 são gerados nos demais setores que atuam na cadeia produtiva – e que são prejudicados pela queda na safra. O La Niña chegou ao fim em março, após três anos, mas isso não significa que a estiagem e suas consequências acabam imediatamente, embora a chuva possa se tornar mais frequente a partir de agora.

“Qualquer medida que se tome será mitigadora para os efeitos de uma estiagem, ainda mais na assistência”, admite o secretário estadual da Agricultura Giovani Feltes. “Não é aquilo que o governo gostaria e que a estiagem impõe, mas é a realidade que o estado vem enfrentando”. De acordo com Feltes, a intenção é manter o Avançar de forma permanente. 

Mas o titular da pasta admite que o dinheiro disponível não é suficiente para prevenir os impactos das próximas estiagens. “Já que a próxima estiagem vai acontecer, que estejamos melhor preparados. Naturalmente nunca o suficiente para fazer frente a essas questões climáticas”, disse em entrevista ao Austral

O secretário não sabe afirmar, no entanto, qual o montante total de recursos destinados a ações que não foquem apenas nas necessidades imediatas impostas pela falta de chuvas. “Numa forma permanente desses programas, o montante é incalculável hoje, não daria para projetar. Mas não tenho a menor dúvida que o somatório será significativo”, diz.

Feltes afirma que devem ser repassados recursos para a perfuração de, no mínimo, um poço artesiano em cada município – a um custo de R$ 130 mil por poço. Desde 2021, foram perfurados 477 poços pelo governo do estado. Ainda conforme o secretário, há 250 cidades habilitadas a receber dinheiro para a instalação de cisternas. 

O secretário não informou em quanto tempo todos esses recursos devem chegar às prefeituras em estado de emergência. “Dependemos, primeiro, da garantia orçamentária. Já começou a andar esse processo, nós vamos precisar que as prefeituras venham a se habilitar com o edital publicado. Demora um certo tempo”, afirma. Feltes diz ser prioridade a criação de poços nos municípios que sofreram os primeiros impactos desta estiagem.

Outra iniciativa do governo, coordenada pela Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), é o monitor de estiagem que passou a funcionar em 5 de março – já no final do La Niña, que terminou dia 9. A ferramenta, além de evidenciar ações do governo para mitigar a seca, contabiliza a população e municípios afetados e apresenta um prognóstico do clima para os próximos meses. 

Foco no agronegócio

O governo Leite informa, na apresentação do programa Supera Estiagem, que R$ 42,7 milhões já foram destinados para que 228 municípios escavem pequenos açudes. Para Feltes, o governo tem sido “cuidadoso ao entender a importância do agronegócio” no estado e “amigo de quem produz no campo”. 

No ano passado, o governo ampliou a competência municipal para o licenciamento ambiental de açudes. Se tiver até 5 hectares, o açude não precisa ser licenciado – é exigida apenas a outorga para uso de água. Até 25 hectares, quem emite a licença é o município. Para açudes maiores, o licenciamento é responsabilidade do estado.

O biólogo e professor da UFRGS Paulo Brack questiona a prioridade dada aos açudes. “Eles impactam a biodiversidade”, afirma. “A recuperação das nascentes de rios é fundamental. Hoje o governo quer simplesmente abrir um açude, pensando somente no setor primário, que é uma forma egoísta de se pensar nas soluções”, diz Brack, que também é coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá).

Na segunda reunião do Fórum Gaúcho de Mudanças Climáticas, realizada em setembro do ano passado na Expointer, o então secretário da Agricultura, Domingos Velho Lopes, afirmou – sem apresentar evidências – que o Rio Grande do Sul é o maior polo de atividade sustentável produtiva do mundo. Mas, para os ambientalistas, a estiagem que agora assola o agronegócio é, em parte, causada pelas práticas do próprio setor – que, embora seja visto como um motor da economia regional, recolhe poucos tributos e se beneficia de isenções do ICMS. 

“A agricultura brasileira está destruindo a própria agricultura brasileira. Os ciclos de água estão sendo quebrados por ela mesma”, diz Francisco Milanez, diretor científico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). “O estado não tem feito nada. Ao contrário, ele tem feito tudo para piorar as questões climáticas”.

Milanez se refere ao primeiro mandato de Leite, considerado por entidades de defesa do meio ambiente um período de retrocessos na área. Entre as ações criticadas por ambientalistas, o governador alterou drasticamente o Código Ambiental do estado e conseguiu aprovação da PEC que permite a gestão privada dos parques estaduais do Caracol, do Delta do Jacuí, de Tainhas e de Turvo.

Inversão do fenômeno?

A falta de planejamento e adaptação a um cenário de colapso climático do Rio Grande do Sul também se reflete na inversão do La Niña. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) prevê um possível retorno do El Niño ainda em 2023. Na última ocorrência do fenômeno, em 2015/2016, as temperaturas médias globais atingiram recordes que contribuíram para a devastação de florestas, ao propiciar focos de incêndio. Eventos de El Niño com essa intensidade normalmente ocorrem uma vez a cada 15 anos.

Caso a previsão de um El Niño em 2023 se confirme, mesmo que menos intenso, a estiagem severa deverá dar lugar a fortes chuvas no estado. Mas o governo também não está preparado para enfrentar as enchentes. Perguntado sobre o tema, Feltes admitiu não haver qualquer plano de ação abrangendo atualmente essa possibilidade. “Se nós tivermos a estiagem acabando e logo ali adiante o excesso das águas, que também traz dificuldades, estaremos numa fase um pouco desafiadora”.

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