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Entenda a maquiagem do reajuste proposto por Leite aos professores

Proposta do governo retira benefícios para dar reajuste, o que torna o aumento inócuo. Governo alega queda de receita do ICMS e cumprimento do Plano de Responsabilidade Fiscal

Bettina Gehm, Austral
#Educação2 de abr. de 239 min de leitura
Projeto de aumenta em 9,45% o salário dos professores do estado, mas retira vantagens de carreira da categoria, tornando o reajuste, na prática, inócuo. Foto: Cpers/Divulgação
Bettina Gehm, Austral2 de abr. de 239 min de leitura

Eduardo Leite definiu a educação como prioridade. Na sua posse, o governador reeleito disse que o governo vai “arrumar as escolas”. Mas uma das primeiras medidas do novo mandato repercutiu mal entre educadores. Será votado, nesta terça-feira (4), o projeto de lei que aumenta em 9,45% o salário dos professores do estado, mas retira vantagens de carreira da categoria, tornando o reajuste, na prática, inócuo. 

O Cpers pede 14,95%. Em plenária, o Sindicato dos Professores do Estado do RS votou por rejeitar a oferta e promete lotar a Assembleia nesta terça. “Nossa resposta à intimidação do governador de cortar o ponto será lotarmos essa praça e a Assembleia, no dia da votação”, disse Helenir Aguiar Schürer, presidente do Cpers, em um protesto no dia 22 de março. 

Em nota enviada para o Austral, a Casa Civil alega que o RS já pagava, em 2022, um salário acima do piso nacional aos professores, de R$ 4,03 mil.  “No ano passado, o valor inicial pago ao magistério gaúcho estava 5% acima do que determinava a lei”, informou. O reajuste proposto por Leite garante que os docentes ganhem, no mínimo, o novo piso nacional da categoria, fixado pelo governo Lula em R$ 4,4 mil para 40 horas de trabalho semanais. Mas estabelece o aumento em cima da chamada parcela de irredutibilidade, que integra o plano de carreira. Ou seja, retira o valor das gratificações que os professores recebem ao longo da carreira. 

Desde 1974, o plano de carreira do magistério estadual contava com os triênios: um aumento de salário a cada três anos de trabalho. “O professor estuda, se qualifica, e isso faz com que possa ir crescendo na carreira. Até os anos 80, o Rio Grande do Sul era um dos estados que melhor pagava [os professores] no Brasil”, explica Schürer. 

Em 2020, Leite mudou o plano de carreira do magistério. O salário dos professores estaduais hoje é dividido em duas partes: uma referente às vantagens temporais (como os triênios); e o valor principal, chamado de subsídio. 

Para dar o reajuste salarial de 9,45%, o governo desconta da parcela das vantagens adquiridas com tempo de carreira. Schürer explica a mudança: “É como se o patrão dissesse ao funcionário: vou te dar R$ 100 de reajuste, só que vou pegar esse dinheiro do seu vale-transporte”. No caso dos professores, em vez do vale-transporte, Leite reduziu as vantagens temporais do plano de carreira. “O reajuste não é real”, resume a presidente do sindicato.

Segundo a Casa Civil, a “redução forçada” do ICMS no ano passado gerou perdas de receitas que impõem “dificuldades e incertezas para o futuro”. Em junho de 2022, Bolsonaro sancionou a lei complementar que limitou o imposto cobrado sobre combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte. Em nota enviada ao Austral, o governo diz que a redução na arrecadação de impostos “impede o governo de conceder um reajuste maior do que o proposto” aos professores.

Um levantamento do Dieese contesta a explicação do governo de que não há dinheiro para o reajuste. O Rio Grande do Sul fechou 2022 com um superávit de R$ 3,3 bilhões, o que significa que as receitas superaram as despesas do estado mesmo com a redução do ICMS. O Dieese também aponta que a parcela de irredutibilidade já vem sendo utilizada para absorver reajustes devidos. Foi o caso do reajuste do piso do magistério em 2022, que embora o governo tenha anunciado ser de 32%, beneficiou apenas 14% da categoria. 

O estado pode destinar recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), uma receita oriunda de impostos, para pagamento de servidores da educação. No entanto, o Rio Grande do Sul encerrou 2022 com saldo na conta do Fundeb de R$ 431 milhões, conforme o Relatório Resumido da Execução Orçamentária (RREO) do ano passado.

Em nota enviada ao Austral, a Secretaria da Fazenda (Sefaz) alegou que o planejamento das despesas efetuadas com recursos do Fundeb não impede que haja um “descompasso” entre essas despesas e as receitas recebidas do fundo. “O saldo financeiro apontado no RREO não significa que os valores estão disponíveis para financiar novas despesas, pois boa parte dele já está inserido no fluxo das despesas do começo do novo ano”

As projeções de impactos fiscais do reajuste para 2023, homologadas na Secretaria do Tesouro Nacional, estimavam um reajuste para os professores sem uso de parte da parcela de irredutibilidade.“Agora o estado encaminha proposta à Assembleia Legislativa considerando absorver [a parcela], fazendo com que muitos professores fiquem sem receber reajuste”, descreve o estudo do Dieese. 

Questionada sobre por que mudou de ideia, a Sefaz disse que o cálculo era apenas uma projeção. A pasta disse que o subsídio mensal pago à categoria já extrapola o acordado no teto de gastos do Plano de Recuperação Fiscal (leia a nota enviada na íntegra), logo o governo teve de atrelar o reajuste à perda dos benefícios de carreira.

Sem diálogo

Este ano, Leite já recebeu os professores duas vezes – uma mudança em relação ao mandato anterior, no qual não houve diálogo com o Piratini. “Mas é só isso que mudou. A intolerância com a construção coletiva nos parece que não foi afastada. Continua igual”, destaca Schürer.

Em nota, o governo afirma que “respeita as manifestações dos educadores e permanece aberto ao diálogo” com o sindicato, mas ameaçou cortar o ponto de quem aderisse às greves convocadas pelo sindicato. No entanto, isso não se concretizou. 

A paralisação mais recente ocorreu na última quarta-feira (22), ocasião em que a presidente do Cpers anunciou outra grande mobilização para esta terça-feira (4), quando o reajuste será votado na Assembleia Legislativa. “Nossa resposta à intimidação do governador de cortar o ponto será lotarmos essa praça e a Assembleia, no dia da votação”, disse

Problema antigo

A mudança no plano de carreira do magistério foi a tônica do primeiro mandato do tucano Eduardo Leite. Mas a defasagem salarial da categoria vem de governos anteriores. “Nós tivemos diversos governos que não pagaram o piso nacional”, argumenta Schürer.

A lei que instituiu o piso salarial para o magistério público no Brasil é de 2008, sancionada pelo então e atual presidente Lula. Quando o petista Tarso Genro assumiu o governo do estado, em 2011, já houve um impasse: ou ele pagava o piso, ou mantinha o plano de carreira dos professores. Segundo um levantamento feito pelo portal Terra em 2013, na época o RS era o estado brasileiro que pagava o salário mais baixo aos docentes. Em 2012, o governador estabeleceu um calendário para aumentar gradativamente a remuneração dos professores até atingir o piso salarial em 2014.

José Ivo Sartori, do MDB, que sucedeu Tarso Genro no governo do RS, parcelou e atrasou os salários durante mais de dois anos. Com tanto atraso no pagamento, os professores chegaram a ficar com o salário 82% abaixo do piso nacional. “Houve meses em que ganhávamos R$ 300 no final do mês, e o resto ia pingando aos poucos”, relembra a presidente do Cpers.

Em seu primeiro mandato, o tucano Eduardo Leite teve o menor gasto proporcional em educação da década, conforme um levantamento do Matinal. Nos dois primeiros anos em que governou o RS, apenas 0,07% das despesas totais do estado foram de investimentos na área.

Os professores gaúchos nunca receberam o piso salarial corretamente, conforme Schürer, já que o governo vem usando a parcela de irredutibilidade para compor o pagamento. O Cpers calcula que, nos últimos anos, os professores já perderam cerca de 54% do salário.

Precarização 

Somente no ano passado é que os pagamentos voltaram a ser feitos sem atrasos. Os salários atrasados resultaram no endividamento em massa dos professores, de acordo com a presidente do Cpers. “Para sobreviver, recorríamos ao banco, fazíamos empréstimos. Hoje a realidade é de uma categoria que não recebe o piso e com um endividamento não somente por causa do atraso [nos pagamentos], mas que cresceu na pandemia”. 

No final de 2020, já com oito meses de aulas remotas devido à covid-19, o governo começou a entrega de 50 mil computadores para os docentes, que estavam lecionando de casa. Em janeiro de 2021, no entanto, apenas 20% das máquinas já haviam sido entregues.

A precarização não se reflete só nos baixos salários. A presidente do Cpers ressalta que parte dos profissionais leciona em duas escolas – em alguns casos, distantes entre si. “Às vezes, esses professores não têm tempo suficiente para almoçar, porque têm que sair correndo de uma escola para outra”. 

A situação ocorre, segundo Schürer, porque muitos docentes são contratados para preencher demandas das instituições de ensino. “Precisa ser feita uma organização geral”, destaca. “É preciso ver todo o quadro e organizar para que esses professores pudessem ficar apenas em uma escola. Além de ser melhor para o professor, que cria laços mais estreitos com a comunidade escolar”.

Impactos na educação

Para o Cpers, a desvalorização dos professores impacta diretamente na qualidade do ensino. “Ter que transmitir conhecimento enquanto está preocupado em como vai pagar as contas não deixa que o profissional se doe totalmente ao seu ofício”, resume a presidente do sindicato.

Em 2021, a Secretaria de Educação (Seduc) realizou a primeira edição do “Avaliar é Tri”, uma avaliação que contou com mais de 600 mil estudantes da educação básica respondendo questionários de Língua Portuguesa e Matemática. Com os resultados, a Seduc diz ter detectado uma “perda de aprendizagem” e que os maiores déficits seriam nesses dois componentes curriculares – os únicos avaliados.

A solução encontrada foi aumentar a carga horária das disciplinas identificadas como deficitárias e, a partir do programa Aprende Mais, ofereceu bolsas de R$ 200 a R$ 500 para os professores que participassem de uma capacitação on-line.

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